terça-feira, 30 de dezembro de 2014

#28 - VISÃO, Fausto José

Desconheço a matéria de que és feita,
Que mão febril teu corpo modelou;
Minha alma, ao pressentir-te, insatisfeita,
Como as ondas do mar se alevantou!

Oh! feminil visão clara e perfeita
Que o meu olhar profano dissipou,
Névoa que a luz do alvorecer enfeita
E o hálito da aragem dispersou!...

Na terra, em sonhos ando a procurar-te,
Na terra, pelo céu, e em toda a parte
Para beijar o rasto de teus pés...

Mas quanto mais minha alma te procura,
Mais teu vulto se perde na fundura...
E por ti morro sem saber quem és!

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

#27 - VISÃO, Caetano da Costa Alegre

Vi-te passar, longe de mim, distante,
Como uma estátua de ébano ambulante;
Ias de luto, doce tutinegra,
E o teu aspecto pesaroso e triste
Prendeu minha alma, sedutora negra;
Depois, cativa de invisível laço,
(O teu encanto, a que ninguém resiste)
Foi-te seguindo o pequenino passo
Até que o vulto gracioso e lindo
Desapareceu longe de mim, distante,
Como uma estátua de ébano ambulante.

domingo, 28 de dezembro de 2014

#26 - "Nunca evitei o desafio", Ibn Darraj al-Qastalli

Nunca evitei o desafio
Na frente de quem seja campeão
Mas hoje só tenho por contrário
A beleza que me mata com requebros
Com beijos doces e abraços,
Que são a sua saudação,
E cadeias
Que me apertam como laços.
Minha vida é dada às armas
E a couraça eu só tiro
Com o peito a palpitar
Se a beleza oculta em véus
Eu pressinto em seu arfar.


(versão de Adalberto Alves)

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

#25 - A POTRANCA, Mauro Mota

Era uma vez uma potranca branca
e alazã, flor quadrúpede e equina.
Era uma vez uma potranca pampa.
Fazia voar nos cascos a campina.

De mulher tinha o cheiro das axilas,
e a cor da vulva no vigor das ancas.
A energia brotava das narinas,
do suor, dos pêlos da potranca pampa.

Era uma vez a filha do Centauro,
quase aérea, suspensa pelas crinas,
a nostalgia do primeiro páreo.

Dor de vê-la cair na pista intacta,
morta e atenta à partida sobre os quatro
galopes paralíticos nas patas.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

#24 - NOITES GÉLIDAS, Cesário Verde

MERINA

Rosto comprido, airosa, angelical, macia,
Por vezes, a alemã que eu sigo e que me agrada,
Mais alva que o luar de Inverno que me esfria,
Nas ruas a que o gás dá noites de balada;
Sob os abafos bons que o Norte escolheria,
Com seu passinho curto e em suas lãs forrada,
Recorda-me a elegância, a graça, a galhardia
De uma ovelhinha branca, ingénua e delicada.

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

#23 - FESTA, Manuel Cândido

Como o potro jovem quer a égua,
como o fogo em lava quer a água,
como o milhafre ansiando a légua,
como a brasa que queima lá na frágua,

como o mar em vida e sem trégua,
como o vento em fúria e sem mágoa,
assim te quero eu: água e égua --
assim te quero eu: légua e frágua.

Como o vinho que a alma embriaga,
como a dança, os frutos e a festa,
como a sarça que arde viva e lesta,

assim te quero eu: dança e sarça,
em fruto e festa e em vinha e garça --
e assim me quero em potro, mar e vaga.

domingo, 16 de novembro de 2014

#22 - "O meu mundo tem estado à tua espera; mas", Maria do Rosário Pedreira

O meu mundo tem estado à tua espera; mas
não há flores nas jarras, nem velas sobre a mesa,
nem retratos escondidos no fundo das gavetas. Sei

que um poema se escreveria entre nós dois; mas
não comprei o vinho, não mudei os lençóis,
não perfumei o decote do vestido.

Se ouço falar de ti, comove-me o teu nome
(mas nem pensar em suspirá-lo ao teu ouvido);
se me dizem que vens, o corpo é uma fogueira --
estalam-me brasas no peito, desvairadas, e respiro
com a violência de um incêndio; mas parto
ante de saber como seria. Não me perguntes

porque se mata o sol na lâmina dos dias
e o meu mundo continua à tua espera:
houve sempre coisas de esguelha nas paisagens
e amores imperfeitos -- Deus tem as mãos grandes.

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

#21 - "Esta noite a tua boca é a mais bela rosa do universo", Omar Khayyam

Esta noite a tua boca é a mais bela rosa do universo
Bebo para afogar este pesadelo
Que o vinho seja rubro como as maçãs do teu rosto
E os meus versos tão leves como os anéis dos teus cabelos


(versão: J. Sousa Braga)

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

#20 - ERÓTICA, Carlos Queirós

A noite descia,
Como um cortinado,
Sobre a erva fria
Do campo orvalhado.


E eu, (fauno em vertigem
A rondar em torno
Do teu corpo virgem,
Sonolento e morno),

Pensava no lasso
Tombar do desejo;
Em breve, o cansaço
Do último beijo...

E no modo como
Sentir menos fácil
O maduro pomo
Do teu corpo grácil.

Ou sem lhe tocar
-- De tanto o querer! --
Ficar a olhar,
Até o esquecer,

Ou como, por entre
Reflexos de lago,
Roçar-lhe no ventre
Luarento afago;

Perpassando os meus
No teus lábios húmidos,
Meu peito nos teus
Brancos
               seios
                         túmidos...

sábado, 18 de outubro de 2014

#19 - "Revimos a grosseira superfície do", Gastão Cruz

Revimos a grosseira superfície do
amor
Ninguém pudera corrompê-la tanto
por actos e palavras. Estivemos
novamente deitados na aspereza
do seu leito
Um ramo na mão tinhas e quiseste
medi-lo com os lábios e metê-lo

no centro doloroso do teu corpo
Eu via as tuas mãos que procuravam
inseri-lo e guardavam
nas linhas ávidas o seu limite grosso
Interrompeste o
sono magoado do meu corpo
e comigo 
dormiste sobre as manchas depois

domingo, 5 de outubro de 2014

#18 - CANTIGA, Francisco Rodrigues Lobo

Antes que o Sol se levante
Vai Vilante a ver o gado,
Mas não vê Sol levantado
Quem vê primeiro a Vilante.

                       VOLTAS

É tanta a graça que tem
Com uma touca mal envolta,
Manga de camisa solta,
Faixa pregada ao desdém,
Que se o Sol a vir diante
Quando vai mungir o gado,
Ficará como enleado
Ante os olhos de Vilante.

Descalça às vezes se atreve
Ir em mangas de camisa,
Se entre as ervas neve pisa
Não se julga qual é neve;
Duvida o que está diante
Quando a vê mungir o gado,
Se é tudo leite amassado,
Se tudo as mãos de Vilante.

Se acaso o braço levanta
Porque a beatilha encolhe,
De qualquer pastor que a olhe
Leva a alma na garganta;
E inda que o Sol se alevante
A dar graça e luz ao prado,
Já Vilante lha tem dado,
Que o Sol tomou de Vilante.

terça-feira, 30 de setembro de 2014

#17 - SEGREDO, Maria Teresa Horta

Não contes do meu
vestido
que tiro pela cabeça

nem que corro os
cortinados
para uma sombra mais espessa

Deixa que feche o 
anel
em redor do teu pescoço
com as minhas longas
pernas
e a sombra do meu poço

Não contes do meu 
novelo
nem da roca de fiar

nem o que faço
com eles
a fim de te ouvir gritar

domingo, 28 de setembro de 2014

#16 - "Olhos graciosos", Francisco Rodrigues Lobo

Estava Lereno enleado com seus cuidados junto duma fonte, quando «ouviu grande alvoroço e festa das serranas, que vinham buscar água à fonte e traziam no meio um vaqueiro ancião com ua rabeca, a cujo som elas em gracioso baile cantavam o seguinte:

Olhos graciosos
de tão boa estreia
não nos há na vila
como nesta aldeia.

Vale mais o desdém
da humilde serrana,
que a vista que engana,
olhos que não vêem.
Não cuide ninguém
que há por esta serra
coração sem guerra
nem serrana feia;
não nas há na vila
como nesta aldeia.

Se os cabelos solta
Lianor ao vento,
com seu movimento,
a touca revolta;
faz ao sol dar a volta
com desejo e gosto,
inda que do rosto
seus raios receia;
não nos há na vila
como nesta aldeia.

A seda custosa
fará mais louçã,
mas não faz a lã
ser menos formosa;
como a bela rosa,
tem preço dobrado
quando, no cerrado,
de espinhos se arreia;
tais são as serranas
desta nossa aldeia.

Chegaram ao pé da fonte com esta alegria e saudaram ao Peregrino que, com inveja daquela liberdade, as estava olhando...»

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

#15 - A NOITE DESCE, Florbela Espanca

Como pálpebras roxas que tombassem
Sobre uns olhos castanhos, carinhosos,
A noite desce... Ah! doces mãos piedosas
Que os meus olhos tristíssimos fechassem!

Assim mãos de bondade me embalassem!
Assim me adormecessem, caridosas,
E em braçadas de lírios e mimosas,
No crepúsculo que desce me enterrassem!

A noite em sombra e fumo se desfaz...
Perfume de baunilha ou de lilás,
A noite põe-me embriagada, louca!

E a noite vai descendo, muda e calma...
Meu doce Amor, tu beijas a minh'alma
Beijando nesta hora a minha boca!

terça-feira, 5 de agosto de 2014

#14 - "Dá a surpresa de ser.", Fernando Pessoa

Dá a surpresa de ser.
É alta, de um louro escuro.
Faz bem só pensar em ver
Seu corpo meio maduro.

Seus seios altos parecem
(Se ela estivesse deitada)
Dois montinhos que amanhecem
Sem ter de haver madrugada.

E a mão do seu braço branco
Assenta em palmo espalhado
Sobre a saliência do flanco
Do seu relevo tapado.

Apetece como um barco.
Tem qualquer coisa de gomo.
Meu Deus, quando é que eu embarco?
Ó fome, quando é que eu como?

terça-feira, 29 de julho de 2014

#13 - ROSAS SEM ESPINHOS, Afonso Lopes Vieira

Esta rosinha de Assis,
sem espinhos, que eu de lá trouxe,
murcha, luminosa e doce,
no seu leve aroma diz:
-- Uma vez tentado foi

o Santo pla carne inquieta;
eis que o desejo lhe dói
numa agonia secreta.


E com a sede dos beijos
e dos ardentes carinhos,
arroja o corpo em desejos
às rosas cheias de espinhos!


Mas nós, quando então o temos
no abraço deste rosal,
os espinhos recolhemos
para lhe não fazer mal.

terça-feira, 22 de julho de 2014

#12 - CANÇÃO DO NU, Afonso Duarte

Lindo
Mármore precioso que na alcova
Surpreendi dormindo!
E lindo
À luz dum fósforo, acendido a medo,
Despertou sorrindo.
E, lindo,
Dos olhos as meninas me saltaram
Para o nu que se estava descobrindo.

Linda!
Ficou-se ao desgasalho adormecida,
Ai vida,
Como ainda não vi coisa tão linda.

Linda,
Braços abertos em desnudo amplexo,
Seu corpo era uma púbere mendiga,
E ele é que estava pedindo,
Lindo,
O meu sexo.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

#11 - "Tua frieza aumenta o meu desejo", Eugénio de Castro

Tua frieza aumenta o meu desejo:
Fecho os meus olhos para te esquecer,
Mas quanto mais procuro não te ver,
Quanto mais fecho os olhos mais te vejo.

Humildemente, atrás de ti rastejo,
Humildemente, sem te convencer,
Antes sentindo para mim crescer
Dos teus desdéns o frígido cortejo.

Sei que jamais hei-se possuir-te, sei
Que outro, feliz, ditoso como um rei,
Enlaçará teu virgem corpo em flor.

Meu coração no entanto não se cansa,
Amam metade os que amam com esp'rança,
Amar sem esp'rança é o verdadeiro amor.

Paris, 29 de Setembro de 1889

quarta-feira, 16 de julho de 2014

#10 - INQUIETAÇÃO, E. M. de Melo e Castro

Como por uma fenda no tempo
diviso as sombras do que vem depois,
e tenho medo de dizer que entendo
o que está escrito para lá de agora.

E tenho medo como uma criança
que nem do que é agora sabe nada,
por isso me assusta esta esperança
de ver romper a madrugada.

Navegantes do céu e das estrelas,
dizei-me, ao menos uma vez,
não mais as canções belas,
mas apenas se o que será
é tão como o que vejo
pela fenda no espaço,
pela fenda do desejo...

segunda-feira, 14 de julho de 2014

#9 - APANHADOR DE PÉROLAS, Rosa Alice Branco

Às vezes a noite estende-se através da pele,
mas tu mergulhas até apanhar a pedra
lá no fundo
e uma clareira começa a abrir-se no buraco
por onde esvaziaste a noite.

terça-feira, 1 de julho de 2014

#8 - JÁ ERA QUASE NOITE, Isabel de Sá

De novo ao calor da lareira
e ouvindo uma sonata de Beethoven
a memória impõe-me cenas
que não posso rasurar.

A perigosa linguagem do teu corpo,
a beleza das mãos sobre a página
de um livro onde aprendias
o ofício, a fascinante química
dos produtos que ajudam a viver.

Depois já era quase noite
e tarde de mais para recuar.
Tudo estava perdido; a nossa honra,
o dia de estudo, o conceito de amor.

terça-feira, 17 de junho de 2014

#7 - "rasgo-te a saia não creias", Jorge Marcel

a uma deliciosa negrinha
que, de mini-saia todas as manhãs me serve
um delicioso mini-café, mostrando muito mais
do que lhe convém

rasgo-te a saia não creias
poder negar por mais tempo
a razão que é meu tormento
tua bunda poderosa
serves à mesa o café
que me provoca e revive
serves e anzolas manhosa
tua bunda viciosa
bunda que ainda não tive
mas vai-te escudando tu
como te cumpres vaidosa
já me ultrapassaste a raia
que um dia de estes me passo
alargo à bunda um abraço
grito um grito Ivanhoe
bebo o café vou-te ao cu
e nem te restauro a saia

terça-feira, 10 de junho de 2014

#6 - ANACREÔNTICA, António Feijó

Teu rosto é como
Um róseo pomo,
Que eu só desejo
Morder num beijo.

Último tomo
De amor que eu domo
Enquanto almejo
O grato ensejo...

O afecto que
Me enchera de
Paixão fatal

Vê com ardor
Teu belo cor-
po escultural!

domingo, 18 de maio de 2014

#5 - TODOS OS BEIJOS..., João de Barros

Todos os beijos da volúpia, os beijos
Da boca sempre inquieta por beijar-te;
E os beijos da minh'alma, sem desejos
Que não sejam, de longe, acarinhar-te...

E os beijos que são longos, como harpejos
Em que fala o meu sonho e a minha arte,
E os beijos em que o sangue tem lampejos
De ciúme e de febre a alucinar-te...

E os beijos desta angústia, em que procuro
Prender nas minhas mãos o teu futuro,
Saber o anseio dos teus olhos tristes...

E ainda os beijos novos que eu não dera,
Os beijos que eu não dava à tua espera
--E que são teus, Amor que não existes!...

sexta-feira, 25 de abril de 2014

#4 - princípio do prazer, Vasco Graça Moura

à sua volta os pombos cor de lava
nos arabescos pretos do basalto
e gente, muita gente que passava
e se detinha a olhá-la em sobressalto

no seu olhar havia uma promessa
nos seus quadris dançava um desafio
num relance de barco mas sem pressa
que fosse ao sol-poente pelo rio

trazia nos cabelos um perfume
a derramar-se em praias de alabastro
e um brilho mais sombrio quase lume
de fogo-fátuo a coroar um mastro

seu porte altivo punha à vista o puro
princípio do prazer que caminhava
carnal e nobre e lúcido e seguro
com qualquer coisa de uma orquídea brava

e nas ruas da baixa pombalina
sua blusa encarnada era a bandeira
e o grito da revolta na retina
de quem fosse atrás dela a vida inteira.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

#3 - NOITE, Maria Teresa Horta

De noite só quero vestido
o tecido dos teus dedos

e sobre os ombros a franja
do final dos cabelos

Sobre os seios quero
a marca
do sinal dos teus dentes

e a vergasta dos teus
lábios
a doer-me sobre o ventre

Nas pernas e no pescoço
quero a pressão mais
ardente

e da saliva o chicote
da tua língua dormente

quarta-feira, 16 de abril de 2014

#2 - NÚRIA, António Barahona

A lentamente bela bruxa cisne magro
A lentamente mate cor do pão de trigo
A lentamente Núria de navalha e ligas

Ah lentamente o corpo se compara ao cubo
e muda as asas quentes em arestas frias!
Mãos vestidas de roxo a festejar a tristeza
em Sexta-feira Santa d'oração medonha!

Ah lentamente a Espanha em procissão nas ruas,
cabelos degrenhados mais guitarras nuas!
Ah Núria, rosa-névoa, lâmina de pétalas
a recortar raízes dos meus olhos d'húmus!

Ah lentamente lentamente aponto e estico
o arco: assobia a flecha no teu flanco
e, de repente, no meu sangue flui um barco


Paço d'Arcos, 13.X.72

quarta-feira, 9 de abril de 2014

#1 - INTANGÍVEL, Francisco Costa

«Nuvem, sonho impalpável do desejo»
ANTERO.
Essa que eu amo e beijo e não existe,
embora exista em mim que a beijo e amo,
nunca há-de vir um dia em que eu a aviste,
nunca a voz hei-de ouvir-lhe quando a chamo.

Mas não me fugirá. Por mais que diste
quando eu a sua ausência já proclamo,
assim que me percebe fraco e triste
volta, e eu volto a sentir-me escravo e amo.

Sei que é uma visão, sei que a componho
eu mesmo, à semelhança do meu sonho,
dando-lhe a luz fictícia que ela emite.

Mas se à minha alma pode enfim bastar
essa alma ideal, – o meu sedento olhar,
esse procura um corpo onde ela habite.