sábado, 31 de dezembro de 2016

#63 - "Já nada me interessa. Levanta-te e dá-me o vinho!", Omar Khayyam

Já nada me interessa. Levanta-te e dá-me o vinho!
Esta noite, a tua boca é a mais bela rosa do universo...
Vinho! Que ele seja rubro como as tuas faces
e os meus remorsos tão leves como os anéis da tua cabeleira.

(versão: Fernando Castro) 

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

#62 - AROMA, Carlos Queirós

Não invejo quem possa merecer
A realidade da tua presença.
Prefiro imaginar-te de intangível matéria,
Com medo de acordar a Beleza que sonha
Na inefável harmonia dos teus gestos...

Assim fosse o teu corpo uma espécie de aroma,
Que apenas preenchesse o ar que eu respirasse!

quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

#61 - VOLÚPIA, Florbela Espanca

No divino impudor da mocidade,
Nesse êxtase pagão que vence a sorte,
Num frémito vibrante de ansiedade,
Dou-te o meu corpo prometido à morte!

A sombra entre a mentira e a verdade…
A nuvem que arrastou o vento norte…
-- Meu corpo! Trago nele um vinho forte:
Meus beijos de volúpia e de maldade!

Trago dálias vermelhas no regaço…
São os dedos do sol quando te abraço,
Cravados no teu peito como lanças!

E do meu corpo os leves arabescos
Vão-te envolvendo em círculos dantescos
Felinamente, em voluptuosas danças…

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

#60 - CABELOS, Cesário Verde

Ó vagas de cabelo esparsas longamente,
Que sois o vasto espelho onde eu me vou mirar,
E tendes o cristal dum lago refulgente
E a rude escuridão dum largo e negro mar;

Canelos torrenciais daquela que me enleva,
Deixai-me mergulhar as mãos e os braços nus
No báratro febril da vossa grande treva,
Que tem cintilações e meigos céus de luz.

Deixai-me navegar, morosamente, a remos,
Quando ele estiver brando e livre de tufões,
E, ao plácido luar, ó vagas, marulhemos
E enchamos de harmonia as amplas solidões.

Deixai-me naufragar no cimo dos cachopos
Ocultos nesse abismo ebânico e tão bom
Como um licor renano a fermentar nos copos
Abismo que se espraia em rendas de Alençon!

E ó mágica mulher, ó minha Inigualável,
Que tens o imenso bem de teres cabelos tais,
E os pisas desdenhoas, altiva, imperturbável,
Entre o rumor banal dos hinos triunfais;

Consente que eu aspire esse perfume raro,
Que exalas da cabeça erguida com fulgor,
Perfume que estonteia um milionário avaro
E faz morrer de febre um louco sonhador.

Eu sei que tu possuis balsâmicos desejos,
E vais na direcção constante do querer,
Mas ouço, ao ver-te andar, melódicos harpejos,
Que fazem mansamente amar e enlanguescer.

E a tua cabeleira, errante pelas costas,
Suponho que te serve, em noites de Verão,
De flácido espaldar aonde te recostas
Se sentes o abandono e a morna prostração.

E ela há-de, ela há-de, um dia, em turbilhões insanos
Nos rolos envolver-me e armar-me do vigor
Que antigamente deu, nos circos dos romanos,
Um óleo para ungir o corpo ao gladiador.

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............................................................................

Ó mantos de veludo esplêndido e sombrio,
Na vossa vastidão posso talvez morrer!
Mas vinde-me aquecer, que eu tenho muito frio
E quero asfixiar-me em ondas de prazer.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

#59 - CINEMATOGRAFIA, Alexandre de Aragão

Cego, o comboio corre léguas,
Com furioso e soturno martelar:
Dum cavaleiro medievo,
Que só sabe vencer,
Lembra-me o galopar...

Tem pressa de levar-me
À Cidade do Prazer.

Lá fora, os véus do luar ondulam
Sobre os prados;
Passam tapetes imensos,
Amarelos e arroxeados,
Que parecem suspensos...

Chego, e o meu desejo se persuade
Do coquetismo da cidade.

Há ruas longas, lisas como braços,
Com vestidos de mosaicos,
Onde mulheres de perfil lendário,
E olhos arcaicos,
Se cruzam como peixes num aquário...

Quando esta perspectiva
No meu País dos Sonhos se alongava,
Já o Tédio, a meu lado,
O sangue me gelava:

Como ele vinha disfarçado!

Eis o meu corpo, filhas das Luxúrias,
Tratai-o qual inimigo:
Não esqueçais que o saber
E a lentidão dum ritual antigo
São a chave do prazer...

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

#58 - AO RIGOR DE LISI, Frei Jerónimo Baía

Mais dura, mais cruel, mais rigorosa
Sois, Lisi, que o cometa, rocha ou muro
Mais rigoroso, mais cruel, mais duro,
Que o Céu vê, cerca o Mar, a Terra goza.

Sois mais rica, mais bela, mais lustrosa
Que a perla, rosa, Sol, ou jasmim puro,
Pois por vós fica feio, pobre e escuro,
Sol em Céu, perla em mar, em jardim rosa.

Não viu tão doce, plácida e amena,
(Brame o Mar, trema a Terra, o Céu se agrave),
Luz o Céu, ave a Terra, o Mar sirena.

Vós triunfais de sirena, luz e ave,
Claro Sol, perla fina, rosa amena,
Mor cometa, árduo muro e rocha grave.

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

#57 - "Acesa a lâmpada p'la noite adiante,", poema sânscrito anónimo


Acesa a lâmpada p'la noite adiante,
e o meu amado sempre ardente amante.
Mas quão de amor sabia o meu amado!
O amor fazia com subtil cuidado.
Que a cama, de indiscreta, rangeria
para contar ao mundo o que sentia.

(versão de Jorge de Sena)

domingo, 20 de novembro de 2016

#56 - "Estuando em risos no prazer de dar-se,", poema sânscrito anónimo

Estuando em risos no prazer de dar-se,
a minha amada com ardor lutava
para ganhar a palma da vitória.
No frágil corpo a força lhe faltava;
e quando percebeu que o grande feito
além do seu poder se conservava,
exausta se quedou antes do fim,
e só com o ansioso olhar me suplicava
que o que faltava me coubesse a mim.

versão de Jorge de Sena

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

#55 - «Tão firmes são as suas ancas,» poema sânscrito anónimo

Tão firmes são as suas ancas,
de tão suave interior,
que não há no mundo imagens
para dizê-las melhor.


(versão de Jorge de Sena)

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

#54 - DESNUDECES, Mario Benedetti

Desnuda una mujer vale la pena
cuando la contemplamos a distancia
porque después / si estamos sobre ella
sólo la vemos con la boca ansiosa

una mujer desnuda es un silencio
que no admite pudor ni violaciones
un silencio a menudo tembloroso
de tanto amor y tanta profecia

una mujer desnuda tiene normas
puede dejarse amar con toda el alma
con todo el cuerpo a veces / pero nunca
con el arte de besos fariseos

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

#53 - "Ao ver a sua boca ao pé da minha boca,", Amaru

Ao ver a sua boca ao pé da minha boca,
desviei o olhar. E as mãos pus nos ouvidos,
quando as palavras dele retiniam.
Também escondi com as mãos o suor de enleio
que a fronte me perlava. Tentei tudo.
Mas que fazer, quando senti que as vestes
por si caíam pelo meu corpo abaixo?


(versão de Jorge de Sena)

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

#52 - MISTERIO GOZOSO, Cecília Quílez

Perdóname labio porque no te pertenezco,
esta plegaria la dicta su lugar hueco.
Mis manos me llevan a sitios prohibidos,
enredando las sábanas, pensándote a solas
como un perro lazarillo bien adiestrado.

Porque es tan casto este ardor
que mi boca peca de ser aún doncella
y llaga mi lengua cada vez que te besa.
Ah, la hiel de tu silencio distante e indefinido
me ha convertido en una virgen impura.

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

#51 . MARIA MADALENA, Álvaro Feijó

I

VIVENDO

Túnica branca a roçagar, silente,
as formas gráceis do corpo leve,
desnudo o colo dum alvor de neve,
cristal o olhar tão luminoso e ardente;

Figura esbelta, fugidia e breve,
prendendo ao corpo dela o olhar da gente,
cedendo Amor, pedindo Amor crescente,
desnudo o colo dum alvor de neve.

Vivendo a lei da Vida, como a Terra
que ama a semente e no seu ventre a encerra,
a alimenta, a agasalha e a reproduz,

Lábioos sorrindo sem esgares de pena,
Deusa de Amor -- Maria Madalena
passa e, empós dela, só há rastros de luz.

terça-feira, 4 de outubro de 2016

#50 - A UMA TRANÇA DE CABELOS NEGROS, Jerónimo Baía


Diversa em cor, igual em bizarria
Sois, bela trança, ao lustre de Sofala;
Luto por negra, por vistosa gala,
Nas cores, noite, na beleza, dia.

Negra, porém, de amor na monarquia
Reinais, senhora, não sereis vassala;
Sombra, mas toda a luz não vos iguala,
Tristeza, mas venceis toda a alegria.

Tudo sois, mas eu tenho resoluto
Que sois só na aparência enganadora,
Negra noite, tristeza, sombra, luto.

Porém, na essência, ó doce matadora,
Quem não dira que sois, e não diz muito,
Dia, gala, alegria, luz, senhora?

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

#49 - "Ternos amadores caminhavam", Helder Moura Pereira


Ternos amadores caminhavam
no caminho que ia dar ao ponto
mais alto da serra, desapareceram
na luz do sol, davam e tiravam
as mãos, vestiam de maneira quase
igual pelo azul do mar. Espião
apenas do suspeito? Também os
pássaros, os arbustos um pouco
inclinados ao vento, as conchas
calcinadas, mistura de cheiros
bons. Os espinhos secos cravavam-se
nas pernas, vi o que não vi, a
ofegante respiração, o alegre
final. Distante da ameaça e do
perdão deixem-me entrar nesse jogo,
apenas mais um.

terça-feira, 27 de setembro de 2016

#48 - INTANGÍVEL, Cândido Guerreiro

No voo em que me enlevo a procurar-te,
Mergulho no infinito, e até parece
Que um murmúrio de cântico e de prece
Me embala e vai comigo a toda a parte...

E toda a sombra má desaparece,
E toda a luz é para iluminar-te,
A música de Deus para cantar-te,
Por ti se enflora a terra e o sol aquece...

Por ti, que enches o mundo e não te vejo,
Onda incorpórea e hálito disperso,
Nuvem de fogo e sonho de desejo!

Por ti, que diluída no universo,
És o dulçor que encontro em cada beijo,
A harmonia que busco em cada verso!...

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

#47 - DEPOIS DO AMOR, Luís Filipe Parrado

De mais nada posso falar,
só deste cheiro a fruta espessa, crua,
que de ti me fica nos dedos,
na polpa, entre as unhas,
mesmo depois do sabonete e da água corrente.

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

#46 - O DIA, Mário Quintana

O dia de lábios escorrendo luz
o dia está na metade da laranja
o dia sentado nu
nem sente os pesados besouros
nem repara que espécie de ser... ou deus... ou animal é esse que passa no frémito da hora
espiando o brotar dos seios.

domingo, 4 de setembro de 2016

#45 - CAIXA DE AMÊNDOAS, João Saraiva

Ireis, amêndoas, saber
Que incomparável ventura
Às vezes há em sofrer.

Na boca vermelha e pura
Onde vos ides perder,
Se vos atrai certa alvura,
Muito deveis padecer.

Desta espantosa tortura
Só vos podeis defender
Duma maneira segura,
Dando-lhe o gozo e a doçura
De vos sentir derreter.

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

#44 - "Esta flor não cheirada, virginal botão,", Kakidasa

Esta flor não cheirada, virginal botão,
imperfurada jóia, mel nunca provado,
esta forma perfeita, esta celeste dádiva:
que homem humano a tanto é destinado?

(trad.: Jorge de Sena)

quarta-feira, 31 de agosto de 2016

#43 - SOIRS ÉTERNELS, Charles Cros

Dans le parc, les oiseaux se querellent entre eux.
Aprés la promenade en de sombres allées,
On rentre; on mange ensemble, et tant de voix mêlées
N'empêchent pas les doux regards, furtifs, heureux.

Et la chambre drapée en tulle vaporeux
Rose de la lueur des veilleuses voilées,
Où ne sonnent jamais les heures désolées!...
Parfums persuadeurs qui montent du lit creux!...

Elle vient, et se livre à mes bras, toute fraîche
D'avoir senti passer l'air solennel du soir
Sur son corps opulent, sous les plis du peignoir.

À bas peignoir! le lit embaume. Ô fleur de pêche
Des épaules, des seins frissonants et peureux!...
Dans le parc les oiseaux se font l'amour entre eux.