quinta-feira, 6 de abril de 2017

#68 - LITANIA, Eugénio de Andrade

O teu rosto inclinado pelo vento;
a feroz brancura dos teus dentes;
as mãos, de certo modo, irresponsáveis,
e contudo sombrias, e contudo transparentes;

o triunfo cruel das tuas pernas,
colunas em repouso se anoitece;
o peito raso, claro, feito água;
a boca sossegada onde apetece

navegar ou cantar, simplesmente ser
a cor dum fruto, o peso duma flor;
as palavras mordendo a solidão,
atravessadas de alegria e de terror;

são a grande razão, a única razão.

quinta-feira, 23 de março de 2017

#67 - DEDICATÓRIA, Rita Taborda Duarte

Não
te ofereço
a rosa
mas
o nome
da rosa

que
serviria
meu amor
oferecer-te
a rosa
se dura
a rosa
pouco mais
que o tempo
em que te
digo        rosa?

Não te
ofereço
a rosa
mas
o nome
meu amor
do amor
da rosa
eco
do que te digo
repetido
e mais rosa
te ofereço
se é
rosa
o que redigo

(rosa por cem vezes repetido)

do que
te dar
a rosa
que
não
dizendo
então
de amor
desdigo
 

terça-feira, 7 de março de 2017

#66 - GREEN GOD, Eugénio de Andrade

Trazia consigo a graça
das fontes quando anoitece.
Era o corpo como um rio
em sereno desafio
com as margens quando desce.

Andava como quem passa
sem ter tempo de parar.
Ervas nasciam dos passos,
cresciam troncos dos braços
quando os erguia no ar.

Sorria como quem dança.
E desfolhava ao dançar
o corpo, que lhe tremia
num ritmo que ele sabia
que os deuses devem usar.

E seguia o seu caminho,
porque era um deus que passava.
Alheio a tudo o que via,
enleado na melodia
duma flauta que tocava.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

#65 - CAMPONESES, Abel Sabaoth

2

O quarto das cebolas.
Por trás da porta esburacada
uma rapariga nua
de belíssimas mamas enxutas puxadas para cima
um cão de lombo comprido o pêlo esticado
outra rapariga de mamilos violentos
-- um sol viúvo.

Praia da Granja
-- Inverno de 2005

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

#64 - PASTORAL, Carlos Queirós

Por ser tão leve o teu passar
Na estrada, à tarde, quando vens
De pôr o gado que não tens,
A pastar...

Por ser tão brando o teu sorrir,
Tão cheio de feliz regresso
Do longe prado, onde apeteço
Contigo ir...

Por ser tão breve o teu querer
Alguém que perto de ti passe
E, porque a tarde cai, te abrace,
Sem nada te dizer...

Por ser tão calmo o teu sonhar
Que já é tempo de não ter
Esse rebanho de pascer,
Mas outro de amamentar...

É que eu me perco no caminho
Do grande sonho sem janelas,
De estar contigo no moinho,
Sem o moleiro nem as velas.